Viver para contar
Entre os livros que terminei de ler recentemente está "El viaje a la semilla - La Biografia" (A viagem à semente - A Biografia, Ed. Alfaguara/Espanha/1997), do escritor colombiano Dasso Saldivar sobre o seu conterrâneo Gabriel García Márquez.
Eu já conhecia, por alto, a obra de García Márquez. Já havia lido "Crônica de uma Morte Anunciada" e começado a ler - sem ter podido terminar, pois era a época do trabalho final da faculdade - "Cem Anos de Solidão". O primeiro, inclusive, me surpreendeu muito, pois a primeira frase do livro é algo como "Santiago Nasar acordou às 10 da manhã no dia em que iria morrer", ou seja, desde a primeira linha o final, no caso a morte, está anunciada. Mesmo assim o livro é fantástico, tem um ritmo constante e prende a atenção até o fim.
Adoro biografias. Gosto de saber quem eram as pessoas que fizeram ou que viveram a história. Além de conhecê-las mais a fundo, isto me permite entender que ninguém nasce sendo aquilo pelo que se tornou famoso. Às vezes, como no caso do escritor colombiano, é o sucesso de uma vida inteira de dedicação, mas outras a própria vida leva o personagem a outro caminho, inesperadamente feliz.
A proposta de Saldivar ao escrever o livro era a de contar "qual a realidade histórica, cultural, familiar e pessoal" do escritor de Cem Anos de Solidão. Não por acaso, a biografia inicia séculos atrás, contando as origens das duas famílias do biografado (os "García" e os "Márquez"), e vem até quase 1970, quando este alcança a consagração com a publicação em vários países do livro que lhe daria o Prêmio Nobel de Literatura.
A literatura de García Márquez é auto-biográfica. Mais do que se basear em pessoas para criar personagens, ele descreve fatos e acontecimetos com uma riqueza de detalhes impressionantes. "Crônica de uma Morte Anunciada", por exemplo, é a história real de Caetano Gentile, um amigo do escritor morto nas mesmas condições que Santiago Nasar, inclusive no que diz respeito aos motivos.
Cem Anos de Solidão, por outro lado, é como se fosse o grande palco onde o autor pode, depois de mais de 20 anos de espera, fazer com que convivessem juntos todos os seus personagens. A origem do livro é anterior a "La Hojarasca", primeiro livro "completo" e publicado de García Marquéz. Neste tempo, contudo, ainda se chamava "La Casa" e não possuía um rumo definido. O amadurecimento foi lento e gradual, conforme o escritor vivia em países como Colômbia, França, Itália, Venezuela, Cuba, Estados Unidos e México.
O envolvimento pessoal de García Márquez com sua "obra maior" foi tanto que durante os quase 2 anos em que a "finalizou" se dedicou somente a ela. Morando em um apartamento alugado, dormia, acordava, escrevia, jantava e voltava a dormir. A única coisa que possuía quando finalizou o livro era uma batedeira, pois todo o resto havia sido penhorado. Ainda assim, no dia em que teve que matar Aureliano Buendía - um de seus principais personagens - chorou copiosamente ao lado da esposa durante horas.
Mais de 10 anos antes de escrever um dos livros melhores livros da história da literatura latino-americana, García Márquez dizia a sua esposa e a seus amigos, enquanto elogiavam seus livros, que o melhor ainda estava por vir. A profundidade da sua pretensão era tamanha que foi necessário que ele trabalhasse anos com cinema para entender que o que queria expressar não seria compreendido de outra forma que não escrita. Tinha que ser algo pessoal, sem a interferência de produtores, diretores ou atores. Ele sabia então que se conseguisse colocar no papel o que ainda nem ao menos conseguia definir, sua literatura se dividiria em antes e depois daquela obra.
"Sua literatura". Pode se dizer que García Márquez encontrou a "sua" literatura. Sua forma de escrever, seus temas e seu ambiente. Isto talvez seja o mais difícil para um escritor. Digo isto pois, na minha humildade de eterno aprendiz, também gostaria muito de viver da escrita. Vejo, ao longo dos anos, mudanças e amadurecimentos na minha forma de escrever, mas ainda não sei se um dia chegarei a ser "alguém". Contudo, essa vivência e este desejo me permitem compreender a entrega e a realização pessoal de homens como Gabriel García Márquez.
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